Marcus Quintella, FGV Transportes
Fábio Vasconcellos, Estaleiro Rio Maguari
Roberto Levier, Waterline Maritime Strategies
Após enviar ao Congresso Nacional o Projeto de Lei “BR do Mar” (PL 4199/2020),
programa que visa incentivar, aumentar a competitividade e impulsionar o transporte
marítimo de cabotagem no Brasil, o Ministério da Infraestrutura (MINFRA), em
setembro de 2020, lançou o programa “BR dos Rios”, com o objetivo de criar uma
política pública voltada ao incentivo do desenvolvimento da navegação interior, tendo
vista o grande potencial fluvial do país.
As características geográficas do território brasileiro são muito favoráveis ao modo
hidroviário, visto que o país possui uma rede fluvial e lacustre com 63 mil km de
extensão, sendo quase 27 mil km de rios navegáveis e 15 mil km de vias potencialmente
navegáveis, segundo a ANTAQ. A Confederação Nacional do Transporte (CNT) levantou
que o Brasil utiliza somente 19 mil km de seus rios para o transporte comercial, de cargas
e passageiros, extensão que corresponde a cerca de 30% de toda sua rede fluvial. Em
termos de densidade da rede fluvial economicamente utilizável, o Brasil tem apenas 2,3
km de vias interiores para cada mil km2, enquanto que China, Rússia e EUA, países de
grandes dimensões territoriais, possuem densidades de 11,5, 6,0 e 4,5,
respectivamente. Uma simples conta mostra que a densidade da rede fluvial brasileira
poderia ser de 7,4 km / 103 km2, caso todo o seu potencial fluvial e lacustre fosse
utilizado.
Apesar das divergências nas diversas fontes existentes, a participação do
transporte aquaviário na matriz de cargas brasileira é de 16%, com grande concentração
em commodities, como grãos, petróleo e minérios, contra 65% do transporte rodoviário,
15% ferroviário, 4,2% dutoviário e 0,4% aéreo. Comparativamente, o Brasil perde
apenas para os EUA em participação aquaviária na matriz de transportes de cargas,
batendo a China e a Rússia. Os EUA possuem 41 mil km de hidrovias e o modo aquaviário
responde por 25% de sua matriz de cargas. China e Rússia, apesar de possuírem enormes
extensões hidroviárias, 110 mil km e 102 mil km, respectivamente, as participações
aquaviárias em suas matrizes de cargas são inferiores à brasileira, ficando em 11% para
ambos os países. Vale ressaltar que esses números comparativos são apenas
referenciais, pois as características geográficas e topográficas das bacias hidrográficas
desses países podem não atender às exigências técnicas, operacionais e comerciais para
o transporte de cargas e pessoas.
De acordo com a ANTAQ, dentro da fatia do transporte aquaviário na matriz
brasileira, apenas 5% das cargas são movimentadas por vias fluviais. Essa baixa
participação tem a ver com a histórica falta de grandes investimentos no transporte
fluvial, pois a prioridade sempre foi dada ao transporte rodoviário pelos governos
federais das últimas décadas. Segundo a CNT, nos últimos 10 anos, os investimentos no
transporte fluvial tiveram uma redução de 87,6%, passando de R$ 872,5, em 2009, para
R$ 108,0 milhões, em 2019.
Em termos de produtividade, no primeiro semestre de 2020, em pleno ambiente
pandêmico, a navegação brasileira por vias interiores transportou 10,09 milhões de
toneladas de cargas, que indica uma queda de 15,2% em relação ao mesmo período de
2019, conforme registrado no boletim CNT Transportes em Números, do mês de
setembro. Segundo a CNT, não se pode culpar a crise econômica decorrente da
pandemia da Covid-19 pelo mau desempenho da navegação fluvial brasileira, uma vez
que esse foi o quinto resultado negativo do modal, na base de comparação semestral,
desde julho de 2018.
Essa situação de subutilização do potencial do transporte fluvial é decorrente aos
entraves de infraestrutura, excesso de burocracia, baixa efetividade de planos e
programas governamentais e poucos recursos financeiros investidos no setor, ao longo
dos anos, segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI).
Em relação ao transporte de passageiros, cuja última informação disponível data
de 2017, a CNT estima que foram transportados cerca de 9,8 milhões de passageiros
pelos rios dos estados do Amapá, Amazonas, Pará e Rondônia. Na Amazônia, o
transporte fluvial de passageiros é fundamental para o deslocamento das pessoas e o
abastecimento das comunidades ribeirinhas, sendo que, em algumas localidades, os rios
são praticamente o único meio de transporte.
Cabe informar que a maior parte do transporte fluvial brasileiro acontece no Arco
Norte, região composta pelos estados de Roraima, Amapá, Amazonas, Pará e Maranhão,
com grande logística portuária, e onde está situada a maior bacia hidrográfica do
mundo. Essa região hidrográfica da Amazônia possui cerca de 16 mil km de rios
navegáveis que apresentam condições ideais para o transporte fluvial de cargas, visto
que estão localizados em planaltos ou planícies, sem quedas d’águas em seus percursos.
As principais “hidrovias” do país são: Tocantins-Araguaia, Solimões-Amazonas, Teles
Pires-Tapajós, São Francisco, Madeira, Paraguai-Paraná, Tietê-Paraná e Taquari-Guaíba.
Em muitos casos, existem problemas ambientais que estão afetando o curso natural dos
rios e impedindo ou dificultando a navegação, como, por exemplo, acúmulo de lixo,
depósito de sedimentos nos leitos, derramamento de óleo, resíduos de obras, esgoto,
retirada da mata ciliar, entre outras agressões realizadas pelo homem. O Rio São
Francisco é um clássico exemplo de assoreamento que está prejudicando, cada vez mais,
a navegação, pesca, produção agrícola e qualidade da água, em boa parte de seus 2,9
mil km de extensão.
O transporte hidroviário é muito adequado para a movimentação de grandes
quantidades de cargas de baixo valor agregado, por médias e longas distâncias, com
poucas emissões de poluentes e com reduzido custo da tonelada transportada. Um
comboio fluvial, com 25 barcaças, pode transportar 50 mil toneladas de soja, que
equivale a cerca de 1.667 carretas rodoviárias de 30 toneladas ou a 5 composições
ferroviárias com cem vagões.
Um importante estudo da CNT aponta que, embora os 42 mil km de vias navegáveis
e potencialmente navegáveis do Brasil sejam chamados de “hidrovias”, o país não
possui, na prática, hidrovias, dentro dos padrões técnicos e operacionais exigidos para
a navegação. O transporte hidroviário brasileiro é realizado com base nas características
naturais dos rios que proporcionam a navegabilidade. Uma hidrovia de verdade precisa
de infraestrutura, ou seja, sinalização adequada, balizamento, sistema de
monitoramento de tráfego, correções nos cursos d’água, dragagens e derrocamentos
frequentes, e, em certos casos, construção de barragens e eclusas. O único sistema que
se aproxima de uma hidrovia, de acordo com o estudo, é o sistema Tietê-Paraná.
Os investimentos a serem realizados em infraestrutura hidroviária são bem
inferiores em comparação às obras rodoviárias e ferroviárias, visto que as vias fluviais já
existem na natureza e precisam apenas de aportes de capital para adaptações, como
dragagens, derrocamentos, eclusas, sinalização e terminais portuários. A CNT calcula
que os custos de manutenção das hidrovias fluviais equivalem a cerca de 10% dos custos
de manutenção de uma rodovia e a 3% de uma ferrovia. Além disso, o transporte
aquaviário oferece menor consumo de combustíveis e maior eficiência energética, bem
como maior segurança em relação a roubos e desvios de cargas, em comparação ao
transporte rodoviário. A quantidade de combustíveis necessária para transportar uma
tonelada de carga por quilômetro é cerca de 34% menor que os caminhões. Um comboio
fluvial economiza 810 mil litros de combustível para transportar 1 tonelada de carga, a
cada mil km rodados.
Todo esse panorama demonstra a enorme capacidade do modo aquaviário fluvial
em contribuir com o equilíbrio da matriz de transporte de cargas em nosso país, que,
atualmente, depende fortemente do modo rodoviário. Diante desse cenário, existe a
necessidade de mudança em nossas políticas públicas de investimentos em transportes,
especialmente na maior bacia hidrográfica navegável do mundo, pronta para atender à
futura maior região produtora de grãos do planeta, que responde, hoje, por 56% da soja
produzida no Brasil e pode atingir a 80% da produção nacional, nos próximos dez anos.
Assim sendo, segundo o MINFRA, a BR dos Rios pretende ser uma política pública
de estado, e não um programa de governo, e dependerá de “pressão social” para
viabilizar os recursos necessários para sua efetivação. O programa, que vem sendo
arquitetado desde 2019, encontra-se em fase inicial de formulação da agenda de
prioridades e ações e de diálogo entre os stakeholders e players para a obtenção de
propostas, legais e infralegais.
O setor hidroviário está muito interessado no sucesso da BR dos Rios, como, por
exemplo, a Associação Brasileira de Entidades Portuárias e Hidroviárias (ABEPH) acredita
que esse novo programa do governo federal trará inúmeros benefícios para a cadeia
logística brasileira. Paralelamente, o Sindicato da Indústria da Construção Naval do
Estado do Pará (Sinconapa) e o Sindicato Nacional da Industria de Construção Naval e
Offshore (Sinaval) aguardam informações mais concretas sobre as propostas básicas do
governo federal para a BR dos Rios, para poderem contribuir efetivamente com as
demandas do setor e, também, poderem atuar para preservar a ativa e competente
indústria de construção naval fluvial existente no Brasil.
Em última análise, o programa BR dos Rios poderá ser de grande relevância para a
implementação de um grande projeto nacional de multimodalidade de transportes,
visto que o transporte fluvial poderá desempenhar papel de destaque no equilíbrio da
matriz de cargas brasileira, bem como contribuir, sobremaneira, para a diminuição dos
custos logísticos e do custo-Brasil. Assim como a BR do Mar poderá evoluir para uma
importante lei federal em favor da cabotagem, precisamos atuar para que a BR dos Rios
siga o mesmo caminho e não seja mais um sonho não realizado.
“Este artigo expressa a opinião dos autores, não representando necessariamente a opinião institucional da FGV.”